Mãe Coragem
Como graduanda do Curso de Artes Cênicas, da Universidade Estadual de Maringá – UEM, mais do que desfrutar de uma peça teatral, há necessidade de estarmos constantemente dentro do teatro assistindo, fazendo ou analisando os espetáculos. São essas vivências que nos dão um arsenal de experiência que possibilitam o desenvolver dos fazeres artísticos, tornando-os mais bem fundamentados e potentes. Mas como ter essas experiências em um momento pandêmico? Em uma época em que sair de casa é um risco para sua saúde e também do coletivo, o teatro deixou de estar presente no nosso cotidiano. A tecnologia há muito tempo vinha sendo utilizada como ferramenta de registro, de compartilhamento, de transmissão e de fazer artístico. Um exemplo disso é o Teatro Oficina Uzyna Uzona, espaço onde os aparatos eletrônicos já estavam incorporados em seus espetáculos há anos, e antes mesmo da pandemia da Covid 19, já transmitiam suas apresentações pelas redes sociais, em lives que possibilitam o acompanhamento em todos lugares do globo terrestre, que tivessem acesso a internet.
Atualmente mais que uma opção, o uso da tecnologia passou a ser a única forma de manter vivas as relações com o teatro. Portanto, o questionamento de ser ou não uma experiência teatral vem sendo pautado nas discussões dos variados grupos. Mas, ao invés de procurar responder esta indagação, proponho a análise individual e a busca por respostas que contribuam para esse debate. Para isso, necessário se fez, contextualizar todos esses elementos para que a reflexão a seguir possa ser melhor compreendida. “Mãe Coragem e os Seus Filhos” de Bertold Brecht, foi montada em 2019 pelo Sesc Pompéia e acabou ficando pouco tempo em cartaz, justamente pela necessidade de fechar os teatros e manter o isolamento social. Mas, um projeto foi criado para que adaptações pudessem ser feitas para o formato digital, o Em Casa Com o Sesc.
Neste trabalho, inúmeras peças foram incluídas, uma delas, a referida acima, que foi contemplada, propondo uma remontagem seguida de reformulação, que foi exibido ao vivo pelo canal do Youtube do Sesc São Paulo, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=5pvo2EBysDM com o título Bete Coelho em "Mãe Coragem" no #EmCasaComSesc. A peça foi escrita por Bertold Brecht em 1939, e se passa na época da guerra dos 30 anos, que aconteceu de 1618 a 1648. Essa narrativa, conta a história de Anna Fierling, uma mulher ambulante que mantinha seu sustento e de seus três filhos vendendo produtos aos soldados, sempre visando os negócios e querendo ter bons lucros. Mas a mãe também não perdia a chance de dar bons conselhos aos seus filhos, ensinando-os a como levar a vida naquele cenário.
O enredo nos mostra como a guerra é a responsável por tirar cada um dos seus três filhos. O mais velho é recrutado para servir como soldado, o segundo como intendente e a filha que é levada também de forma trágica. Com isso, a peça nos revela a incoerência desta personagem tão profunda que vive uma contradição diariamente, em uma linha tênue, entre ser sustentada por esse cenário horrendo e ter seus filhos tomados de forma abrupta.
Esta poderia ser uma ótima peça dramática, levando a lágrimas os que entrassem em contato com a história de “Mãe Coragem e os Seus Filhos”, no entanto, o dramaturgo não tem a intenção de imergir os espectadores neste ambiente sensível e emocionante. Pelo contrário, a proposta de Brecht é que através de suas obras haja o questionamento e a reflexão por meio do distanciamento, que ocorre de diferentes formas, podendo ser: quando os atores deixam seus personagens de lado, durante a peça, quebrando a quarta parede e dialogando diretamente com o público, fazendo-os refletir sobre os acontecimentos que se passaram durante a cena; também quando as músicas cantadas pelos atores soam estranhas, por não possuírem uma métrica contínua, ou seja, ela foge de uma estrutura padrão comumente usada na música popular, gerando um certo desconforto aos ouvintes. Outra forma de quebra da condução da narração é não haver uma cenografia realista/naturalista no palco, a ideia é que apenas o essencial esteja presente; além disso, não existe a preocupação de esconder os aparatos necessários para as cenas, então as luzes, cordas e outros itens não são encobertos por cortinas ou escondidos nas coxias, eles estão ali presentes reforçando a ideia de distanciamento.
Ao assistir a adaptação de Bete Coelho para o ambiente virtual, mais que a reflexão sobre a guerra dos 30 anos, foi traçado um paralelo com a atualidade, principalmente aqui no Brasil, com a pandemia do novo Coronavírus, revelando a atemporalidade da proposta de Brecht, que dá conta de relembrar um marco histórico trágico, mas também dialoga com a calamidade deste momento pandêmico.
A cenografia, maquiagem, figurino, atuação, filmagem e demais elementos se revelaram fiéis quanto a proposta de Brecht. Cada umas dessas especificidades se mostraram potentes quando somadas e apresentadas na live, pois não foram redundantes, dialogavam com a ideia de distanciamento e estranhamento. A peça se inicia com a atriz abrindo o diálogo sobre a relação entre a guerra dos trinta anos e a Pandemia da Covid-19. Isto, logo despertou o questionamento se a apresentação de fato teria começado ou se estava acontecendo uma introdução a cena.
A transmissão acontece em uma casa, um espaço não convencional principalmente pensando no contexto ao qual a peça se dá. Há uma certa desordem com caixas, maquiagens e há espelhos espalhados por uma bancada, o que à primeira vista, não faz sentido. Este espaço permanece o mesmo durante toda a live. O figurino e a maquiagem inicialmente também estão descontextualizados, já que a atriz inicia sua fala sem um figurino, aparentemente fala como Bete Coelho, não caracterizada como Anna Fierling, e ao passar de seu monólogo ela vai se produzindo e entrando dentro do universo da peça, ali na frente do público.
O câmera-man não evita aparecer nos reflexos dos espelhos, muito menos de esconder seus equipamentos e por vezes dá a entender que esta é mesmo a intenção, revelar sua presença aos que acompanham. Além desses pontos supracitados, também se mostra importante ressaltar a transição entre personagem e atriz que Bete Coelho apresenta, saindo de um e entrando em outro com precisão e fluidez. Esse deslocamento acontecia sempre quando a atriz se direcionava a um espelho, se retirando da personagem e conversando diretamente com os telespectadores, o que concretiza a ideia de distanciamento prevista para a peça.
Dito isto, a live revela uma linha tênue entre teatro e não teatro, sendo composta por elementos que correspondem a especificidade da arte cênica e formas que dizem respeito a criações audiovisuais. Toda a contextualização necessária vem para que, além de certezas imutáveis, o questionamento seja constante e a peça ‘Bete Coelho em "Mãe Coragem" no #EmCasaComSesc’ reforça essa afirmativa.
Acadêmica: Débora Corrêa da Silva (Artes Cênicas UEM)
Maringá, 21 de março de 2021
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