Peça-filme “DESFAZENDA – ME ENTERREM FORA DESSE LUGAR”, 2022
A primeira direção da atriz-mc, slammer e diretora Roberta Estrela D’Alva fora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (NBD), dessa vez com o coletivo teatral paulistano chamado "O Bonde", resultou na peça-filme “Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar”, que discute o silenciamento das pessoas negras, revelando as relações complexas da manutenção da violência aos corpos. A peça traz muitas camadas atemporais, utilizando recortes de memórias das referências de episódios recentes de racismo e se desenvolve em ação dramática na história contada dos personagens 12, 13, 23 e 40, quatro pessoas negras que de início quase acreditam que foram “salvas” da guerra por um padre branco.
Por não se lembrarem do passado, eles vivem numa fazenda cuidando das tarefas diárias; quando chegaram não sabiam nem falar, eram supervisionadas por Zero, figura semelhante, enigmática e onipresente, com quem tinham relações de amor e ódio. Apesar do que lhes foi dito como certo, os personagens tem lapsos de memórias que trazem sentimentos contrários ao que lhes foi ensinado ali, começam a ter curiosidade do mundo fora da fazenda, duvidar do padre e de suas intenções, expressam o cansaço e a vontade de sair de lá, mas não saem, por acreditarem na guerra e por terem medo.
O Padre guarda um grande mistério na capela, inclusive sua própria existência, a guerra nunca chegou na fazenda e quando eles começam a refletir sobre os questionamentos, “e se…”, o sino toca e então é hora de orar ou de trabalhar, até que um vulto, que representa a voz que silenciada, chega à fazenda fazendo o silêncio ser quebrado, “algo perdido querendo fugir”,”o fim da ilusão”. Quando escutam um tiro, encontram o corpo de Zero e seu diário, onde está toda a verdade, a guerra não existe, o padre morreu quando eles ainda eram crianças e Zero continuou agindo como se o padre estivesse vivo, pois segundo ele mesmo, ele não existia. “Zero, matéria intensa e não formada, um número que abraça aquilo que já veio e que impulsiona o que está por vir”.
A obra mistura poesia, cinema, teatro, e mergulha na estética hip-hop para repensar e denunciar o racismo em um tom dramático quase narrativo, influenciado pela linguagem do spoken word (forma de fala recitativa), próxima ao canto do rap, com ritmo cortante e lirismo com temas periféricos que organiza todo o espetáculo. Os quatro personagens são múltiplas vozes que formam uma voz que ecoa várias, “muitos membros em um só corpo”. Também as variações de ritmo do texto, a recitação e os efeitos da filmagem, localiza os atores numa encenação rimada no âmbito do hip hop, o que já é esperado de Roberta Estrela D’alva, por ser precursora do Poetry Slam (batalha de poesia falada) no Brasil, e por desenvolver o conceito sobre teatro-hip hop e ator-mc, que literalmente une os elementos do teatro e os elementos da cultura Hip Hop.
O palco, a iluminação, a narração e o ritmo se fazem muito presentes em todo o desenvolvimento da história. Trazendo assim muitos elementos do teatro épico, como os elementos cênicos expostos, a canção de músicas, quebra da quarta parede, atores narradores etc. Elementos esses também presentes no conceito do teatro hip-hop, vertente muito trabalhada por Roberta em sua carreira artística.
Como a obra foi desenvolvida em meio a pandemia, Roberta une a linguagem teatral com a linguagem digital resultando em uma peça-filme adaptada para as telas, que abusa da disponibilidade visual de mídias como filmagens, fotografias, sons, cortes e transições, o que influencia fortemente na experiência tanto do ator, quanto do espectador.
Ao tratarmos do lugar dos atores, que estão longe da energia da plateia, vemos que mesmo assim a obra fica entre ser uma peça e um filme, já que toda a estética da filmagem ainda se dá em um palco, com os contras e os microfones à vista. Diferente da peça ao vivo, onde eles tem que olhar para várias pessoas, em diferentes lugares na plateia, quando os atores olham para uma câmera, a sensação para quem assiste é de estar sendo olhado nos olhos, trazendo uma relação mais individual e intimidadora.
Como telespectadora foi uma experiência mais distanciada, por estar no conforto do meu quarto, sozinha, apenas com os olhos e ouvidos focados, deixando o resto do meu corpo estático, o que diminui o efeito da presença do corpo vivo em um ambiente totalmente diferente da proposta, em contrapartida com os quatro atores, em pé, contando histórias de pessoas que foram retiradas de seus lares e obrigadas a viver em função de uma doutrina branca.
Mesmo assim, torna-se muito válida a experiência da peça-filme pensando em um contexto de pandemia e negacionismo no país, o que também nos faz refletir sobre os privilégios das pessoas brancas e a denúncia do racismo estrutural.
Acadêmica: Gabrielly Portela Rizzo (Artes Cênicas UEM)
Maringá, 19 de março de 2024
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